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segunda-feira, 29 de junho de 2009

MANIFESTO DO OLINDO EM 2009

24 DE ABRIL DE 2009 – DIA NACIONAL DE PARALISAÇÃO DOS TRABALHADORES EM EDUCAÇÃO (PROFESSORES, ESPECIALISTAS E FUNCIONÁRIOS)

EM DEFESA: DO PISO SALARIAL NACIONAL; DO PLANO DE CARREIRRA DO MAGISTÉRIO ESTADUAL; e de REAJUSTE SALARIAL

30 ANOS DE GREVES: A nossa primeira greve ocorreu em abril de 1979. Tempos difíceis. Ditadura militar, ameaças de prisão, repressão e perseguição política. Mas ousamos, com outras categorias de trabalhadores como metalúrgicos e bancários, lutar por democracia e melhores condições de trabalho. De lá para cá foram muitas paralizações, greves, debates com a comunidade, ameaças, longos dias parados e muitos dias de aula recuperados. E temos muito orgulho de ter lutado em defesa da escola pública, da democracia e de um estado com políticas públicas para todos os homens e mulheres.

A GREVE DE 2008: Fomos forçados, em novembro de 2008, a paralisar por quinze dias tendo em vista o envio de projeto que transformava o piso salarial em salário mínimo e máximo, ao mesmo tempo, com o expurgo de diversos direitos dos trabalhadores. A nossa greve durou o tempo necessário para fazer o governo recuar, obtendo apoio da grande maioria dos deputados estaduais. Ocorre que o governo, com sua intransigência, resolveu descontar os dias parados, mesmo com todos os trabalhadores recuperando as aulas não ministradas e fechando o ano letivo antes de 9 de janeiro. Isto para nós foi um roubo, pois todos nós perdemos metade do nosso salário de novenbro e tivemos o final de ano mais apertado financeiramente de nossas vidas. Mesmo assim continuamos lutando.

A CAMPANHA DOS OUTDOORS – A VERDADEIRA FACE E O FORA YEDA: A partir de então iniciamos já em janeiro e fevereiro a luta para desmascarar a desgovernadora. Daí saiu a campanha dos outdoors que gerou tantos debates e que mostrou o quanto devemos contionuar acreditando numa luta que muitas vezes deve ser radicalizada na defesa dos direitos e da educação. Para nós, então, Yeda é a representante retardada do Projeto Neoliberal privatizante do Estado que já mostrou a que veio provocando a ataual crise em nível mundial e local, com o livre mercado sem regulação e fiscalização. Este Governo conservador afunda num mar de lama apoiado no grande capital e nos segmento dos latifundiários do estado tentando massacrar os trabalhadores. É um governo protegido pelo monopólio da mídia. Onde a Corrupção campeia para todos os lados (Detran 40 milhões, Casa da Governadora, Solidária etc.) e onde a impunidade é matéria de vergonha nacional. Ela incrimina, reprime e ataca os movimentos sociais impedindo a manifestação e a luta por direitos. Atua no desmonte dos serviços e do patrimônio públicos. Arrocha salário, reforma carreiras, reduz gastos com saúde (não cumprindo os 12% constitucionais) e na educação (não cumprindo os 35%), vende ações do Banrisul, demite na EMATER. Na educação, corta verbas, cria enturmação, a multisseriação, fecha laboratórios e bibliotecas, escolas, inclusive da escola itinerante, municipaliza. Zero na Educação, Zero na Saúde e Zero na Segurança Pública. Tudo de acordo com o receituário do Banco Mundial que dita as normas e manda enxugar. Por isso tudo fazemos um apelo: Ela não pode continuar.
Assim, conclamamos todos os pais, alunos e
membros da comunidade escolar e da sociedade para nos apoiar nesta luta.

PELO PISO SALARIAL NACIONAL – PELO NOSSO PLANO DE CARREIRA - POR MELHORIAS NA SITUAÇÃO DAS ESCOLAS PÚBLICAS

PROFESSORES E FUNCIONÁRIOS DA ESCOLA ESTADUAL DE ENSINO MÉDIO OLINDO FLORES DA SILVA – SÃO LEOPOLDO - RS

sexta-feira, 26 de junho de 2009

O PNC de Aristóteles

A REFUTAÇÃO DE ARISTÓTELES EM GAMMA 4


INTRODUÇÃO

No início do capítulo 4, do livro Gamma da Metafísica , Aristóteles apresenta em três parágrafos (1005 b 35 - 1006 a 29) o que vamos designar aqui como sendo a sua primeira versão de refutação e que é o objeto de interpretação deste trabalho.

Esta refutação, segundo Aristóteles parece permitir interpretar, é e pode ser erguida satisfatoriamente contra um certo opositor do Princípio de Não Contradição , desde que sejam respeitadas certas condições. Algumas das características da refutação tem sido sublinhadas já por outros comentadores.

A nossa interpretação aqui tem por objetivo básico uma certa forma de explicitação da classificação das contribuições dessas condições para a força lógica do argumento e de algumas características que essa refutação deve apresentar necessariamente para ser bem sucedida. O interesse nisto é inspirado numa hipótese já clássica em filosofia que leva em conta o cruzamento em certos argumentos filosóficos de condições lógicas e ontológicas em uma certa relação de reciprocidade.

Vamos procurar, com isso, entender melhor o que deveria ser objeto de interpretação e discussão na refutação de Aristóteles.





DAS CONDIÇÕES PROBLEMÁTICAS

Estas condições, parecendo coincidir neste aspecto às condições classificadas nas diversas versões de PNC que Aristóteles apresenta , podem ser caracterizadas e classificadas como envolvendo respostas para algumas questões e limitações psicológicas, lógicas, dialécticas, ontológicas e também da linguagem. Vamos tomar estas primeiras versões relativas às condições de reconhecimento do argumento como pedra de toque e parâmetro da nossa investigação.

A - ENFRENTANDO OS CÉTICOS

Parece interessante também que, nesse quadro de Gamma 4, o opositor do princípio possa ser caracterizado tanto como um heracliteano quanto como um cético. Talvez esta seja, por isso, uma das passagens aristotélicas mais polêmicas porque muito tem sido muito debatida e examinada a necessidade de argumentar para que um cético reconheça este princípio e que um heracliteano retire de uma tese temporal a possibilidade de redundar numa consequência ontológica, o que pode significar, também, para o nosso caso, que uma tentativa de interpretá-la de novo seja somente o resultado e o signo de uma audácia.

Alguns intérpretes e comentadores de lavra e extração diversa repudiam parcial ou globalmente esta refutação por considerarem as condições que ela apresenta como levando o argumento para o gênero do que é vicioso. Esses intérpretes baseiam-se, de certo modo, numa tentativa de determinar, justamente, com a investigação dos traços dialécticos e psicológicos que o argumento apresenta, o que deve ocorrer para o sucesso do argumento, logo, baseiam a sua atribuição de vício do argumento nas condições dialógicas e psicológicas de reconhecimento, isto é, numa certa interpretação do peso que essas condições acrescentam à refutação. Essas condições são aquelas que julgamos como sendo exageradamente destacadas como marcantes nesta refutação. Para demonstrar isso precisamos mostrar que elas são dispensáveis no curso de reconhecimento do princípio, não contribuindo em nada com o peso lógico ou força lógica de uma certa versão do princípio.

Ela serve, assim, através desses traços dialéticos e/ou psicológicos, de inspiração tanto para uma rejeição da força lógica do argumento, quanto para a afirmação de uma relação de dependência dialéctica entre dois sujeitos, sob a forma de um diálogo na apresentação do argumento. Tudo se passa como se a força lógica do argumento fosse abalada, sob o primeiro enfoque, pelo modo de reconhecimento do argumento estar confinado ao domínio do privado, isto é, do psicológico, e, sob o segundo enfoque, como se a força lógica estivesse abalada pela circunstância dele ser apresentado em um diálogo, isto é, da dialéctica envolvida no processo de persuasão do opositor. Mas, não parece provável, entretanto, que essas condições “psicológicas” e “dialéticas” são as únicas condições de sucesso do argumento. E, desse modo, interessa saber se a força lógica do argumento repousa em uma condição necessária de natureza estritamente lógica ou não. E é isso que vamos procurar determinar aqui.


Porém, essa tentativa de interpretação lógica que aqui será apresentada é bastante colegial e simples ao procurar restringir-se ao limites do texto e à escolha dentre os possíveis sentidos do texto daquele qual que permite o seu reconhecimento. Pois quem limita-se a tentar interpretar restritamente o argumento por refutação sem fazer uso de todos os recursos que o Corpus Aristotelicum apresenta e, também, se nisso for concedida a licença, sem fazer uso de todos os intérpretes de Aristóteles, lança-se ao risco de simplesmente tentar aprender algo com ele através da leitura do seu argumento. Nesse sentido, este trabalho acata a indicação pedagógica do autor, mas se ocupa também com a força lógica envolvida no curso do argumento.

Nisso, as pretensões pedagógicas que este trabalho tem não são muitas e concentram-se somente em mostrar que essa refutação é acompanhada por uma explicação pormenorizada das suas condições essenciais de sucesso, que nos permite partir para o exame dessas condições e sugerir com isso uma certa interpretação - não tão original quanto outras já apresentadas por eminentes filósofos e comentadores - sobre a natureza e o resultado de uma certa compreensão de todas essas condições de sucesso do argumento por refutação de Gamma 4.

O nosso objetivo aqui é, assim, procurar salientar algumas dessas condições essenciais de sucesso da refutação de Gamma 4 e, talvez, mostrar que elas permitem uma certa forma de interpretação não psicológica que permite, também, mostrar que nada do que é nessa refutação eminentemente caracterizado como dialéctico contribui ou altera a força lógica do argumento, isto é, o reconhecimento lógico que Aristóteles busca da utilidade do princípio.

APRESENTAÇÃO DO ARGUMENTO

Para prosseguir a partir desta caracterização preliminar do nosso objetivo interpretativo que é determinar o que ocorre com a dialéctica e a psicologia nesta forma de refutação no livro Gamma, capítulo 4, e avançar sobre esta explicação pormenorizada e, com isso, dar uma caracterização adequada aos outros pontos do argumento de Aristóteles que envolvem as condições essenciais de sucesso da refutação, vejamos agora os seus três parágrafos em seu texto:

“Porém há alguns que, segundo dizemos, pretendem , por uma parte, que uma mesma coisa é e não é, e que, por outra parte, o concebem assim. E usam esta linguagem muitos inclusive dos que tratam acerca da Natureza. Porém nós acabamos de ver que é impossível ser e não ser simultaneamente, e deste modo temos mostrado que este é o mais firme de todos os princípios. Exigem, certamente, alguns, por ignorância, que também isto se demonstre; é ignorância, em efeito, não conhecer de que coisas se deve buscar demonstração e de que coisas não. Pois é impossível que exista demonstração absolutamente de todas as coisas ( já que se procederia ao infinito, de modo que tão pouco assim haveria demonstração); e, se de algumas coisas não se deve buscar demonstração, acaso podem dizer para nós que princípio necessita menos demonstração que este?

Porém se pode demonstrar por refutação também a impossibilidade disso ( da impossibilidade de que o mesmo algo é e não é simultaneamente ), contando somente com que diga algo o adversário; e, se não diz nada, é ridículo tratar de discutir com quem não pode dizer nada, enquanto que não possa dizê-lo; pois esse tal, enquanto tal, é por ele mesmo semelhante a uma planta. Porém digo que demonstrar refutativamente não é o mesmo que demonstrar, pois pareceria reinvindicar, aquele que quer demonstrar, que se aceite o que está contido no princípio em questão; porém sendo outro o causante de tal coisa, haveria refutação e não demonstração.
E o ponto de partida para todos os argumentos dessa classe não é exigir que o adversário reconheça que algo é e não é ( pois isto sem dúvida podería ser considerado como uma petição de princípio), senão que signifique algo para ele mesmo e para outro; isto, com efeito, ele necessariamente tem de reconhecê-lo se realmente quer dizer algo; pois, se não, este tal não poderia raciocinar nem consigo mesmo nem com outro. Porém, se concede isto, será possível uma demonstração, pois já há algo definido. Porém o culpável ( pela petitio principii ), não será o que demonstra, senão aquele que se submete à demonstração; pois, ao destruir o raciocínio, se submete ao raciocínio. Além disso, aquele que concede isso já tem concedido que há algo verdadeiro sem demonstração [ por conseguinte não se pode afirmar que tudo seja assim e não assim ].”

Metafísica, , 4, 1005 b 35 - 1006 a 29.

A - A INTRODUÇÃO DA PRETENSÃO

Aristóteles também permite caracterizar que essa defesa do princípio é causada pela pretensão (dicunt) de um adversário que, por ignorância ou falta de educação ( eupaideis), rejeita a legitimidade do princípio sob um certa descrição. Avançar sobre uma caracterização do papel dessa “pretensão” na caracterização da qualificação que Aristóteles dá do tipo de rejeição que esse princípio obtem do seu rival, parece permitir indicar que se é uma mera “pretensão”, então, o rival somente declara a recusa do princípio sem ser capaz de manifestá-la com sentido, seja através de ações seja através de palavras.

A refutação dessa pretensão, segundo o Filósofo, é uma forma de demonstração muito particular e distinta da demonstração lato sensu, pois exige que o opositor faça algo ou signifique algo pelo menos para si mesmo ou para outro. Logo, o sentido dialético de refutação aí é específico e deve ser melhor compreendido, pois introduz também um sentido não dialético através do aspecto “para si mesmo” que tem a característica de permitir, para fins de interpretação, a sua tradução para um contexto em que o reconhecimento do princípio pode ser feito “sozinho”. Como já dissemos de início, na abertura, essa direção interpretativa abre o flanco para uma ataque do seu rigor por uma acusação de psicologismo.

B - O CARÁTER PEDAGÓGICO DA PASSAGEM

A forma de compreender inicialmente o argumento de Aristóteles no contexto da Metafísica indica também que ele introduz esse argumento na obra para, no curso de uma lição sobre o primeiro princípio - que como ele anota é indemonstrável -, mostrar como ele pode ser defendido contra certos rivais que se apresentam contra ele.

Como Aristóteles parece julgar crucial que esse princípio deva valer para toda aplicação e em qualquer forma de sua apresentação, isto é, sem restrições, e o opositor resiste a aceitar pelo menos uma das suas formas de apresentação, Aristóteles dá início, nesse capítulo, à uma apresentação pedagógica dos diversos modos através dos quais é possível fazer ou sugerir ao opositor a aceitar por si mesmo e aprender a compreender a necessidade do uso deste princípio em seus diferentes contextos e a reconhecer cada uma das formas do princípio.

Isso indica que o curso de defesa do princípio é um curso concebido como um tratamento sistemático e pedagógico, por isso indireto, de um certo opositor que pretende negar o princípio e, de certo modo, parece que o texto permite compreender que Aristóteles não está aí a se dirigir para o seu opositor mas sim para quem já admitiu o princípio ( um ou mais discípulos) e que está ocupado em aprender a sua extensão máxima de aplicação dentro de um curso.

C - A REJEIÇÃO DO OPOSITOR

Trata-se, portanto, de uma resposta que venha a defender o primeiro princípio contra um certo tipo de argumento ou tese geral. Essa resposta tem um caráter especial na obra, pois corresponde à um ponto fundamental da Metafísica de Aristóteles, a saber, a fundamentação e a sustentação do primeiro princípio perante o seu opositor mais forte.

Assim, parece que Aristóteles procura e também permite advertir que no decorrer do seu texto que algumas condições dialéticas e não psicológicas e algumas condições conceituais devem ser cumpridas nessa forma de demonstração para que ela seja bem sucedida. Nestes três primeiros parágrafos do capítulo 4 do livro Gamma da Metafísica, onde Aristóteles nos apresenta a sua primeira refutação temos também uma versão do exame no conceito. Isto é, Aristóteles também permite interpretar nesse texto a noção de exame da consistência no conceito que nós introduziremos nessa interpretação. Importa ver como isso é possível, justamente, num texto que parece depender de um certa forma de argumento até, então, nesta interpretação restrita à uma interpretação dialética.

D - O ABANDONO DA DIALÉCTICA PELO TEXTO

Uma discussão corrente sobre o argumento que está amparada numa interpretação restritamente dialética aponta também para uma petição de princípio ou um círculo vicioso no argumento. Interessa, de imediato, mostrar que isso só pode ser alegado se desconhecemos algumas das condições conceituais de sucesso dessa refutação.

Uma condição conceitual explícita que impede a petição de princípio por parte de quem o defende é de que o personagem opositor ao princípio nesse diálogo é que deve raciocinar por si mesmo contra o princípio. Assim, aquele que rejeita o princípio, isto é, aquele que recusa a validade do princípio é aquele que deveria poder raciocinar sem o princípio para poder rejeitá-lo, do contrário, se ele raciocina com o princípio, então ao tentar rejeitá-lo faz consigo mesmo uma petição de princípio, e nada mais pode sequer pensar. Nesse sentido, tanto defender o princípio no sentido de procurar demonstrar o princípio como, também, rejeitá-lo envolve, com certeza uma petitio principii. O próprio Aristóteles faz questão de salientar esse perigo nesse texto e indica o meio para evitá-lo. É fácil ver que é justamente sobre isso que repousa a condição de que quem deve fazer o raciocínio e com isso aprender é justamente uma vítima de uma auto-refutação, no sentido de que a partir desse exame descobre por si mesmo o seu erro. Pois, tudo de que ele precisava para reconhecer o argumento de defesa do princípio era dizer ou fazer algo, ou conceber algo, para si e (ou) para outro . Esse outro pode ou não ser dispensado no curso do argumento? Em caso negativo, então é essencial à defesa do princípio que ele transcorra dialeticamente, isto é, que mesmo que cabe ao opositor “fazer algo”, cabe ao refutador solicitar-lhe que faça isso. Mas em caso positivo, o princípio é lógico e obtém um certo tipo de reconhecimento na sua aplicação em que simplesmente cabe ao opositor fazer algo para si mesmo, sem solicitação de outrém . E isso será então um traço conceitual do princípio, a saber, que o seu reconhecimento é dado no seu uso ou aplicação do mesmo modo para si como para outrém.

Vamos tentar compreender as passagens e os termos assinalados acima para tentar agora discriminar melhor essa lição. Nisso, podemos dar uma atenção especial para uma certa forma de compreender o argumento de Aristóteles. A partir de um exame de algumas sugestões que Aristóteles oferece em outras obras sobre os termos em que ele apresenta a questão, vamos verificar se isso pode nos ajudar a introduzir um traço essencial à esse tipo de argumento.

II - A NATUREZA DAS PREMISSAS

A - PREMISSAS DIALÉTICAS

Na Analítica Priora Aristóteles nos dá uma caracterização específica e diferenciada das premissas envolvidas numa argumentação dialética e numa argumentação demonstrativa. Segundo Aristóteles:

“A premissa demonstrativa difere da premissa dialética em que, na premissa demonstrativa, se toma uma das duas partes da contradição, porque demonstrar não é perguntar, é propor; na premissa dialética interroga-se o opositor para se escolher entre as duas partes da contradição. Todavia, esta diferença não afeta a produção do silogismo, nem num caso, nem no outro, porque seja para demonstrar, seja a interrogar, o silogismo constrói-se, propondo que um predicado se predica, ou não se predica de um sujeito. Resulta assim, que uma premissa silogística em geral consiste ou na afirmação ou na negação de algum predicado acerca de algum sujeito, tal como acabamos de expor. É demonstrativa, se for verdadeira e obtida através dos axiomas fundamentais, enquanto que, na premissa dialética, o que interroga pede ao opositor para escolher uma das duas partes de uma contradição, mas, desde que silogize, propõe uma asserção acerca do aparente e do verossímil, tal como já indicamos nos Tópicos.” ( i.e. - 1, 1, 100 a 25-30.) Analítica Priora. I, 1, 24 a - 24 b.

Assim, segundo o primeiro ponto de exame do texto, podemos diferenciar as premissas demonstrativas e as premissas dialéticas através de um critério de diferenciação entre o que é “perguntar” e o que é “propor” que de certo modo qualifica diferentes contextos de argumentação, mas isso não é suficiente para distinguir as premissas, o que não é tão simples quanto parece.

Na premissa demonstrativa deve-se “tomar uma das partes da contradição”, já na premissa dialética “interroga-se o opositor para se escolher entre as duas partes da contradição”, mas segundo Aristóteles “isso não afeta a produção do silogismo”, pois que “seja para demonstrar seja para interrogar” o “silogismo”, afinal de contas, “contrói-se, propondo que um predicado se predica, ou não se predica de um sujeito”. E Aristóteles esclarece, então, na passagem em seguida, o que é uma premissa para ambos os casos de premissas, a saber, que “uma premissa silogística em geral consiste ou na afirmação ou na negação de um predicado acerca de um sujeito”. No final da passagem que citamos Aristóteles acrescenta à sua argumentação uma outra distinção que permite compreender definitivamente onde encontra-se a diferença entre as premissas dialéticas e as premissas demonstrativas que ele vem examinando.

Segundo Aristóteles é demonstrativa a premissa que “se for verdadeira” é “obtida através dos axiomas fundamentais” e é dialética a premissa em que “o que interroga pede ao opositor para escolher uma das duas partes de uma contradição” sob a condição de que este opositor “desde que silogize propõe uma asserção acerca do aparente e do verossímil.”

Assim, a distinção entre premissas demonstrativas e premissas dialéticas não repousa fundamentalmente na diferença entre perguntar ou propor algo de alguma coisa, nem na natureza de um silogismo, mas sim repousa sobre a diferença de natureza de objetos entre premissas que são “verdadeiras” ou derivadas de “axiomas fundamentais” e premissas que são relativas ao “aparente” e o “verossímil” e, por isso mesmo, encontram-se adstritas ao domínio da mera opinião (doxa), utilizando nesse contexto uma terminologia consagrada na Filosofia Grega Clássica.

Portanto, temos agora que esclarecer um pouco mais sobre o que versa esse “aparente ou verossímil” e sobre o que versa o “verdadeiro” ou derivado de “axiomas fundamentais”. Para isso vamos seguir a sugestão de Aristóteles de que tal foi tratado em Tópicos para prosseguir a nossa análise inicial.

B - O APARENTE E OS AXIOMAS FUNDAMENTAIS

Passamos a examinar diretamente, agora, a passagem de Tópicos em que Aristóteles nos esclarece o tipo de premissa e argumento envolvido numa demonstração ou num exercício dialético do raciocínio. Interessa neste exame somente erguer e esclarecer a diferença entre as premissas baseadas em axiomas e as premissas baseadas no aparente, pois é só isso que precisamos para determinar a natureza exata das premissas na refutação. Vejamos isso, portanto, nessa passagem dos Tópicos.

“Ora, o raciocínio é um argumento em que, estabelecidas certas coisas, outras coisas diferentes se deduzem necessariamente das primeiras. (a) O raciocínio é uma “demonstração” quando as premissas das quais parte são verdadeiras e primeiras, ou quando o conhecimento que delas temos provém originariamente de premissas primeiras e verdadeiras: e, por outro lado, (b), o raciocínio é “dialético” quando parte de opiniões geralmente aceitas.”
São “verdadeiras” e “primeiras” aquelas coisas nas quais acreditamos bem virtude de nenhuma outra coisa que não seja elas próprias; pois, no tocante aos primeiros princípios da ciência, é descabido buscar mais além o porquê e as razões dos mesmos; cada um dos primeiros princípios deve impor a convicção da sua verdade em si mesmo e por si mesmo.

São, por outro lado, opiniões “geralmente aceitas” aquelas que todo mundo admite, ou a maioria das pessoas, ou os filósofos - em outras palavras: todos, ou a maioria, ou os mais eminentes.”
Tópicos. 1, 1, 100 a25-b20

C -PREMISSAS PLATÔNICAS

Na Metafísica o livro Kapha é, segundo JAEGER. 1995: 240, um texto apócrifo feito pelas mãos inconscientes de um discípulo. Segundo o modo como ROSS sumariza este livro no prefácio à sua edição (p.X) traduzida da Metafísica os livros 4 e 5 de Kapha apresentam em uma Shorter Form of  3 and 4. ROSS confirma a rejeição desse texto em sua obra Aristóteles.

Donde se explica a possibilidade de se erguer uma hipótese pelo que, justamente, Aristóteles apresentaria - seja pelas mãos de um díscipulo seja por si mesmo, então, nesse livro, uma contra-face com alguns traços de orientação Platônica para esse capítulo 4 de .

Poder-se-á verificar se essa contra-face é neo-platônica através do exame de algumas teses subjacentes ou relativas aos tópicos platônicos. Verificar-se-á, então, se um viés eminentemente ontológico de caráter platônico ou aristotélico aí se apresenta nas filigramas desse texto, mas, principalmente, poderemos verificar com isso se a interpretação que sugerimos leva ou não à admissão de teses contrárias às de Aristóteles.

Vale anotar, também, que JAEGER reinvindica o uso de uma passagem do mesmo livro para os seus fins. Do mesmo modo reinvindicamos a mesma passagem para demarcar um limite para a nossa interpretação da passagem de , 4 através dos “avanços” que o discípulo ou Aristóteles apresentou no início de K, 5, vamos tentar limitar a interpretação da versão ontológica em , 4. Vejamos o texto:

“Há entre os seres certo princípio acerca do qual não é possível enganar-se, senão que necessariamente se fará sempre o contrário, é dizer, descobrir a verdade; a saber: que não cabe que a mesma coisa seja e não seja simultaneamente, e as demais informações que encerram em si mesmas uma posição semelhante. E acerca de tais princípios não há demonstração absoluta, porém não há contra este; pois não é possível sacar isto mesmo como conclusão de um princípio mais fidedigno, o qual seria preciso para uma demonstração absoluta. Frente ao que sustenta afirmações, quem trata de mostrar que a sua postura é falsa deve tomar como base alguma afirmação que seja o mesmo que o princípio segundo o qual não é possível que a mesma coisa seja e não seja simultaneamente, porém que não pareça ser o mesmo; pois só assim pode fazer-se a demonstração contra o que afirma que é possível que as afirmações contraditórias sejam verdadeiras a propósito de uma mesma coisa.

Assim, pois, os que vão participar em uma discussão recíproca devem entender-se em certa medida; pois, se não se dá esta condição, como vai haver entre eles comunidade de raciocínio?” Metafísica. K, 5, 1061 b 34 - 1062 a 14.

FIM

NOTAS:

Usamos como texto base para a tradução da refutação do livro Gamma, capítulo 4, a tradução para o espanhol de GARCIA YEBRA. Mas para melhorar a versão portuguesa a seguir fazemos uso de um cotejo entre as variantes para alguns termos entre as traduções de MOERBEKE, ROSS, TRICOT, COLLE, AZCARATE, VALLANDRO, KIRWAN, YEBRA.

Pode-se optar entre um opositor forte ou médio. O cético e o heracliteano. Como o heracliteano acaba por reconhecer que a mudança é de aspecto, resta somente o cético.

Segundo classifica ROJO.

Conf. KANT, I. Crítica da Razão Pura. Trad. Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Abril Cultural, 1983, para edição B. Especialmente em Do Princípio Supremo de Todos os Juízos Analíticos, B 189-B 193, no que ele interpreta a expressão de Aristóteles do PNC “é impossível que algo seja e não seja simultaneamente” como contendo “uma síntese introduzida nele por descuido e de modo completamente desnecessário”(B 191). O uso que Aristóteles faz dessa expressão não é, queremos destacar em primeiro lugar, nesse contexto do princípio, propriamente a introdução de uma qualidade temporal, mas sim a abstração do tempo. Ao dizer que “é impossível que algo seja e não seja simultaneamente” Aristóteles não está usando o “simultaneamente” aí para dizer “ao mesmo tempo”, mas sim “num único tempo”. Esse “num único tempo” é quase equivalente aí à uma eternidade. Se forçarmos um pouco nessa direção interpretativa, percebemos que “simultaneamente” funciona aí como um operador de exclusão do tempo e não como um operador intermediário entre “ser antecessor de” e “ser sucessor de”. Nesse sentido, o que é “simultâneo” aí é o “mesmo”. A expressão funciona, então, no princípio como modalidade de exclusão do tempo e, também, como modalidade de exclusão complementar ao “que seja e não seja” do princípio introduzindo uma espécie de identidade na fórmula do princípio de não contradição. O “simultâneo” aí indica, então, a identidade do sujeito ou do objeto sobre o qual repousa a imputação de ser ou não ser. Assim, “simultâneo” não introduz uma síntese no juízo, mas sim fortalece o caráter analítico mesmo do princípio de não contradição e, contrariando Kant, podemos dizer que o simultâneo de Aristóteles contribui nesse princípio para a sua perfeita analiticidade. Um desenvolvimento maior desse argumento encontra-se em meu texto Kant e o PNC de Aristóteles.

grifos nossos nos nossos pontos de exame.

as partes sublinhadas são acréscimos.

- Introduzimos uma disjunção nesse texto. Veja bem: fazer algo para si e “ou” para outrem, quer dizer, reconhecer consigo mesmo ou fazer outrém reconhecer algo. A expressão latina por MOERBEKE para a passagem referida é: “Sed significare quidem aliquid et ipsi et alii.” Conf. In: METAFÍSICA, Gamma, 4, 1006 a 20. ET, p.171.


- Dispensado o diálogo e o contexto refutativo dialético temos um contexto de outra natureza envolvido no reconhecimento do princípio. Em Zettel, Wittgenstein contra algumas versões de idealismo ou realismo pergunta “como é que eles educam os seus filhos?” Uma analogia aqui poderia ser feita: “Como é que o “insensato” educa seus filhos?”

Aristóteles e Kant: notas de uma controvérsia sobre o PNC

KANT E O PNC DE ARISTÓTELES: UM ESBOÇO*

Poderia parecer uma audácia oferecer uma interpretação divergente de um autor clássico como Kant e pareceria ainda mais precipitado se isso, ainda por cima, dissesse respeito à uma certa passagem de outro autor clássico como Aristóteles, mas isso é, em uma exploração inicial, o que se procura apresentar aqui.

Este estudo é mais e é menos do que isso. Primeiro, porque não se limita em procurar nem gostaria de ultrapassar alguma tentativa de correção de Kant e, em segundo lugar, porque o que é corrigido é somente uma posição que Kant apresenta em uma pequena linha do seu texto, o que, é preciso dizer: ainda é pouco. E o interesse nesse estudo está concentrado não tanto na possibilidade de corrigir um clássico como Kant ou Aristóteles, mas sim em compreender, a partir de um pequeno exame gerado por essa pequena linha de Kant, um traço importante de um ponto clássico de Aristóteles, a saber, do seu princípio de não contradição .

Nesse sentido, o objetivo principal deste trabalho é dar ênfase a um dos traços lógicos marcantes do princípio de não contradição de Aristóteles, e isso é feito a partir de um exame de uma expressão que é enfocada no modo como Kant interpretou esse traço numa certa formulação aristotélica desse princípio.

Trata-se de uma reeleitura de uma passagem presente na Crítica da Razão Pura , em que Kant se põe a interpretar como um índice temporal uma certa expressão que, como pretendemos mostrar, tem um caráter analítico, isto é, Kant se põe a interpretar como uma referência indicativa de um evento entre outros no tempo o que, na fórmula do princípio, segundo a nossa interpretação, é uma expressão que comparece e é de uso analítico no princípio de não contradição de Aristóteles.

Especificamente e restritamente , numa passagem, numa linha, presente em Do Princípio Supremo de Todos os Juízos Analíticos , B 189-193, da Crítica da Razão Pura, Kant permite sugerir que ele está enganado no modo como ele interpreta a expressão de Aristóteles do PNC “é impossível que algo seja e não seja simultaneamente” como contendo “uma síntese introduzida nele por descuido e de modo completamente desnecessário” (B 191, g.n.). Kant faz isso não somente através de uma certa interpretação da expressão “simultaneamente” contida no enunciado do princípio de Aristóteles , mas também por causa de uma certa interpretação do que vem a ser propriamente uma síntese no seu programa .

Kant acusa esse descuido de Aristóteles porque para ele contendo tal acréscimo o PNC não é mais um princípio analítico, mas sim um princípio sintético do uso do entendimento. A consequência dessa interpretação de Kant é simpliciter: Aristóteles não tinha clareza sobre o que estava fazendo ao pôr “simultaneamente” nessa formulação do princípio de não contradição.

Pareceria ousado tentar corrigir Kant em diversos aspectos, mas nesse ponto controverso ele incorreu num erro. Caso tivesse dado atenção ou analisado no pormenor que papel cumpre a expressão “simultaneamente” no princípio e no contexto de Aristóteles, poderia sem muita dificuldade ter entendido que é com essa expressão que fica excluída do princípio a temporalidade e que, em certos termos, é com esta expressão precisamente que o princípio se torna absolutamente analítico, não envolvendo, nem no pormenor, alguma síntese .

Para explicar melhor o nosso ponto e mostrar com algum destaque isso podemos começar por uma análise da função temporal de um dos usos possíveis das expressões “ser simultâneo a” e de sua companheiras categoriais “ser sucessor de” ou “ser antecessor de”. Depois disto vamos interpretar uma versão de uso da expressão “simultâneo” que exclui, justamente, o caráter de uma necessária determinação temporal no princípio, isto é, que exclui um uso categorial referido às categorias acima. Em sequência vamos mostrar que nos termos aristotélicos o que faz do princípio um princípio analítico por excelência é justamente esta expressão “simultâneo” que figura na fórmula. Isso significa, deve-se anotar, por um lado, que não há nenhuma síntese introduzida no princípio de Aristóteles e, por outro lado, que a expressão “simultâneo” presente no princípio de não contradição não foi introduzida nele por descuido ou desnecessariamente.
I

Estas expressões temporais “ser simultâneo a” e “ser sucessor de” ou “ser antecessor de”, desempenham e podem desempenhar um papel determinado quando submetemos, nos termos de Kant, algumas intuições sensíveis à forma do sentido interno que é o tempo. Com elas podemos diferenciar e localizar no tempo, por exemplo, os números ou, então, numa perspectiva representacional sobre aquilo que nos é dado sensivelmente ou externamente, a ordem em que certos objetos nos são dados. Mas a própria análise desse uso temporal da expressão “simultâneo” permite introduzir, como se verá, um uso não temporal dessa expressão, nesse exato sentido, esse exemplo que vamos introduzir - se é que isso é um bom exemplo para compreender o que procuramos - permite cunhar ou, melhor, identificar um uso analítico desta expressão.

Podemos, num exemplo trivial, supor que Fernando está de aniversário e que sua mãe faz questão de registrar os presentes recebidos em uma lista minuciosamente completa na qual, inicialmente, é importante diferenciar a ordem de recebimento dos presentes de aniversário de Fernando. Alguém, nessa festa de aniversário hipotética, estará dizendo e registrando na lista que o presente recebido de Paulo é sucessor do presente recebido de José que, por sua vez, é sucessor do presente recebido de Rosa.

Podemos dizer também que o presente de Rosa é antecessor do presente de José e que, no mesmo sentido, o presente de José é antecessor do presente de Paulo. Nesse exemplo, pelo menos até aqui, não foi apresentado nenhum caso de algum presente que é recebido ou entregue simultaneamente à outro presente.

Bem poderia ser o caso, também, que o aniversariante recebesse presentes simultâneos, afinal Fernando tem duas mãos e a sua festa de aniversário é bastante concorrida. Isso, entretanto, não significa que na ordem dos registros não possamos diferenciar numa certa ordem temporal o presente que foi dado à mão direita do aniversariante do presente que foi dado à mão esquerda do aniversariante. Um observador acostumado com este evento familiar não terá dificuldade em perceber qual mão recebe e de quem o primeiro presente e o segundo presente.

Poderíamos, entretanto, para efeitos de uma determinação temporal exata, dado que o observador é um iniciante nessas questões familiares, usar um monitor temporal que nos permitisse determinar exatamente qual presente é dado à qual mão nessa ordem de antecessor e sucessor temporal. No monitor temos, afinal, uma possibilidade de discriminar perfeitamente, em milésimos de segundo, qual presente vem ou, melhor, chega antes do outro. Não encontramos ainda nada simultâneo aqui. Mesmo assim, ainda que se verifique ao monitor que as entregas coincidem temporalmente em milésimos de segundo, poderíamos eleger a mão direita como o critério soberano da ordem nos casos em que há coincidência temporal para efeitos de determinação do sucessor ou antecessor, isto é, quando houver simultaneidade exata no nosso preciso e rigoroso monitor temporal daremos prioridade a mão direita de Fernando. Tudo se passa, então, soberanamente como se a mão esquerda de Fernando só recebesse presentes depois da mão direita de Fernando.

Mas poderíamos também, em outro sentido, sugerir que nesse caso não fosse exigido o registro minucioso do “sucessor” e do “antecessor” em uma lista da ordem de entrega dos presentes - e que podemos tomar como efetivo que Lúcia e Isabel entregaram os presentes simultaneamente à Fernando e assim registrar. Nesse caso nós vamos tomar a conjunção das mãos na entrega dos presentes como um índice de simultaneidade e vamos jogar fora o monitor temporal e também a pretensão de determinar exatamente qual presente é dado primeiro. Ao jogar fora esse monitor temporal nós simplesmente contrariamos a disposição inicial do aniversário, isto é, passamos a registrar, contrariamente à ordem da mãe de Fernando, uma outra ordem de recebimento dos presentes. Podemos agora registrar nessa ordem presentes simultâneos.

Ora, é exatamente nesse ponto que poderíamos passar a recusar também a necessidade de distinguir as mãos de Fernando e é exatamente nesse ponto que poderíamos dizer que Fernando, aconteça o que acontecer, sempre recebe um presente de cada vez, pois a conjunção foi excluída e com ela a possibilidade de haver alguma forma de simultaneidade temporal no recebimento dos presentes de Fernando. Isto é, ele recebe um presente de cada vez. Fernando torna-se um maneta.

II

Agora surge a oportunidade de se compreender como esse exemplo nos permite
chegar até um uso não temporal da expressão “simultâneo”. Se utilizarmos agora explicitamente o PNC de Aristóteles para elucidar alguns dos eventos dessa festa de aniversário se verá em que sentido específico Aristóteles usa a expressão “simultâneo”.

Digamos que Fernando esteja ainda recebendo os seus presentes e que Beatriz se aproxime dele para entregar-lhe o seu presente de aniversário. Fernando com a sua fina cordialidade sorri e estende a mão à Beatriz. Esta lhe dá um pacote vermelho, com uma fita amarela, e exclama: “Querido Fernando espero que você goste deste presente que eu escolhi!”. Fernando afirma com um olhar meigo e jovial: “Ora, Beatriz os teus presentes sempre são perfeitos para mim!” e complementa após um sorriso suave: “Este presente que você me dá não será diferente para mim!” Beatriz se afasta e Fernando continua a receber os seus presentes.

Ora, nesse quadro Fernando - esse nosso amigo veraz - poderia ter dito para Beatriz: “Isso não é um presente!” enquanto está a recebê-lo entre as mãos? No caso, faria algum sentido dizer nesse instante quase perpétuo “Isso é um presente e isso não é um presente.”? Tirando as circunstâncias em que Fernando brinca com as palavras - e Fernando jamais brinca com as palavras na frente das visitas - Fernando não diria isso.

Esse último exemplo serve como uma aplicação, digamos, sintética do PNC, pois Fernando não diz enquanto recebe sensivelmente algo que esse algo é e não é. O PNC de Aristóteles que Kant acusa de sintético expressa “é impossível que algo seja e não seja simultaneamente” vamos ver o contexto em que ele é, em sua forma, analítico.

Bem poderia ser o caso agora que Fernando encontra-se num contexto diverso do seu aniversário. No caso, após os convidados se retirarem da festa de aniversário Fernando está com o presente de Beatriz entre as mãos e começa a abrí-lo. Após retirar cuidadosamente a fita amarela e após retirar o papel vermelho que envolvia uma caixa de cartão, Fernando abre a caixa e exclama para si: “Oba, um chapéu panamá!” Fernando não tem dúvidas de que isso é um chapéu panamá e, mais que isso, ele conhece um chapéu panamá à distância, pois se acostumou a identificar alguns dos seus amigos em meio à multidão por causa desse elegante adereço.

Nesse contexto específico, Fernando não pode dizer que o chapéu é e não é panamá, pois ele sabe o que é um chapéu panamá e é isso que ele põe sobre a cabeça agora. Nesse sentido, o contexto isolado nos permite dizer que Fernando está a subscrever uma certa versão lógica do PNC de Aristóteles. É impossível que Fernando - que em alguns contextos até faz a política do sinal trocado - diga para si mesmo que esse algo é e não é.

É, portanto, nesse contexto que Fernando significa algo, subscrevendo o princípio de não contradição, e nesse contexto do seu dizer não entra em discussão de forma alguma se há algo que sucede ou que precede esse dizer ou fazer. Nesse contexto, designar “Este chapéu panamá.” não é simultâneo a nada mais. A única coisa simultânea aí poderia ser o chapéu entre as mãos, na cabeça, no chão ou sobre a mesa.

Ora, como a versão do PNC de Aristóteles que está em jogo aqui é aquela em que ele procura fazer um certo opositor pedagogicamente reconhecer o princípio de que “é impossível que algo é e não é simultaneamente” em Gamma 4, não requer mais do que uma “palavra”, isto é, que o opositor signifique algo para si e (ou) para outro, então o tempo não entra em questão aqui. E é nesse quadro razoavelmente rígido que não vale dizer simultaneamente X e não-X. Mais que isso, com a modalidade (é impossível) que Aristóteles usa aí, dizer simultaneamente X e não-X é impossível. Algo que é impossível necessariamente de ser dito ou feito está a ser indicado aí. E isso é algo profundamente irrefutável, pois se é condição do significado é, também, condição da possibilidade mesma de afirmar ou contrariar algo.

A simultaneidade aí em jogo é focal . Não se trata da possibilidade de dois presentes chegarem juntos às mãos de Fernando, mas sim da impossibilidade de Fernando significar um presente contraditoriamente.

Assim parece ter ficado claro que a expressão “simultâneo” no princípio e no
contexto por nós indicado não envolve nenhuma síntese na sua forma, pois não se trata de uma determinação temporal que venha a discernir um evento de outros eventos, isto é, ela não figura aí para indicar um presente entre os presentes, mas sim para indicar um presente e o seu significado. Talvez atraz disso esteja uma certa determinação omnitemporal que serve para discernir um ato único, num tempo único, sobre um objeto único.

Após esse devaneio de elucidação sobre estes exemplos de expressões temporais e não temporais temos alguns resultados que por transposição ao princípio de Aristóteles podem nos ajudar a compreender o seu uso da expressão “simultaneamente” no PNC. Estes resultados são relativos às modalidades de uso dessas expressões e se não estivermos errados na nossa experiência de exemplificação anterior, podemos discriminar os seguintes resultados:

1) há um uso temporal de “simultâneo” exemplificado no caso do aniversário;
2) há um uso não temporal de “simultâneo” apresentado no caso do chapéu.

III

O uso que Aristóteles faz dessa expressão não é, queremos ainda destacar, nesse contexto do princípio, propriamente a introdução de uma qualidade temporal, mas sim a abstração de uma certa diversidade no tempo, pois parece ser plausível que podemos usar “simultâneo” quando é dado somente um objeto num único tempo e quando este objeto é significado num único tempo.

Ao dizer que “é impossível que algo seja e não seja simultaneamente” Aristóteles não está usando o “simultaneamente” aí para simplesmente dizer “ao mesmo tempo” dentro de um tempo em que são dados diversos objetos (os presentes do nosso exemplo), mas sim “num único tempo” em que é dado um único objeto. Esse “num único tempo” que acompanha o objeto é quase equivalente aí à uma eternidade ou ao único tempo necessário para a apresentação de um objeto, ou, por exemplo dentro da refutação de Gamma 4, para a significação de algo.

Se forçarmos um pouco mais nessa direção interpretativa, percebemos que “simultaneamente” funciona aí como um operador de exclusão da diversidade do tempo e não como um operador intermediário entre “ser antecessor de” e “ser sucessor de”. Assim, esse “simultaneamente” contribui aí para a identidade “focal” do ser do qual se diz algo, não para a discriminação desse ser de outros seres.

Nesse sentido, o que é “simultâneo” aí é o “mesmo”. A expressão funciona, então, no princípio como modalidade de exclusão do tempo e, também, como modalidade de exclusão complementar ao “que seja e não seja” do princípio introduzindo uma espécie de identidade na fórmula do princípio de não contradição. O “simultâneo” aí indica, então, a identidade extra-temporal do sujeito ou do objeto sobre o qual repousa a imputação necessária de ser ou não ser.

Assim, “simultâneo” não introduz uma síntese no juízo, mas sim fortalece o caráter analítico mesmo do princípio de não contradição e, contrariando Kant, podemos dizer que o simultâneo de Aristóteles contribui nesse princípio para a sua perfeita analiticidade. Talvez um kantiano da cepa fique um pouco aborrecido com este resultado, mas isso significa, se for concedida a vênia, que algo está sendo posto em debate e que, pelo menos da nossa perspectiva, a solução definitiva ainda não foi encontrada.



DANIEL ADAMS BOEIRA- PPG-FILOSOFIA/UFRGS - 25/10/1996.

NOTAS:

* Este trabalho é a apresentação de um exame inicial desse tema. O trabalho é resultante de dois processos que se conjugaram nos meus estudos: 1. o meu estudo do PNC de Aristóteles, motivado por Wittgenstein, e 2. o meu estudo e reeleitura de Kant retomado no seminário do Prof. Dr. Mario Caimi sobre a Estética Transcendental de Kant. Por isso dedico este trabalho ao Prof. Mario Caimi que me estimulou bastante através da sua erudição e clareza. Espero somente que o estilo do trabalho não seja aborrecedor e retribua o prazer proporcionado pelo professor ao aluno.

É importante anotar que Aristóteles apresenta ao longo da Metafísica diversas versões de princípio de não contradição (PNC), que tem causado algumas polêmicas interpretativas. Uma classificação dessas versões é oferecida por ROJO. 1971. Cito:

1) versões ontológicas:
a) “Não é possível que a mesma coisa seja e não seja simultaneamente” Met. V, 5, 1062 a 5
b) “É impossível, em efeito, que um mesmo atributo seja dado e não seja dado simultaneamente no mesmo sujeito e no mesmo sentido” Met., IV, 3, 1005 b 15-20
c) “É impossível que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo”
2) versões lógicas:
a) “Não são verdadeiras simultaneamente as afirmações opostas.” Met. , IV, 6, 1011 b 15.
b) “Não é possível que as afirmações contraditórias sejam verdadeiras com relação às mesmas coisas” Met., XI, 5, 1062 a 30.
3) versão psicológica:
a) “É impossível que um mesmo admita simultaneamente que uma coisa é e não é. Pois simultaneamente teria as opiniões contrárias e se enganaria a respeito disso.” Met. XI, 4, 1005 a 25-30.

Poder-se-ia dizer que Aristóteles apresenta uma versão para cada tipo de ciência. Nesse sentido, cada versão do PNC introduziria uma diferença específica que é pertinente ao tipo de ciência na qual esse princípio tem vigência. Mas, ao mesmo tempo, não parece fútil dizer que todas estas versões são, no fundo, derivadas de uma versão eminentemente lógica. Como afirma IRWIN, trata-se de um princípio de uma ciência especial. É, portanto, no pano de fundo dessa versão lógica que nós nos deslocaremos aqui.

Conf. KANT, I. Crítica da Razão Pura. Trad. Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Abril Cultural, 1983, para edição B.

Não vamos, portanto, cotejar aqui todas as passagens em que essa interpretação de Kant do PNC de Aristóteles se apresenta na Crítica da Razão Pura, mas, se este exame inicial estiver correto, não será trivial indicar a necessidade desse exame nas obras teóricas de Kant.

Esta passagem insere-se no Livro Segundo da Analítica Transcendental, capítulo segundo, seção primeira. Nos restringimos à esta passagem em nossa interpretação.

Essa expressão do princípio encontra-se em Metafísica, Livro Gamma, Capítulo 4. Expressão que é classificada por ROJO, como mostramos antes, como sendo uma versão ontológica do princípio. O traço importante aí é a expressão “simultâneo” na fórmula. Talvez um exame mais profundo de Kant explique melhor a razão dessa diferença. As perguntas seriam relativas à concepção de Kant relativa à expressão “ser simultâneo”. Saber se ela figura na estética, na lógica, na analítica e na dialéctica e sob qual interpretação. Na tradução de Valério Rohden, vale destacar também, na versão de Kant temos “que algo seja e não seja”, vamos simpliciter substituir por “que algo é e não é” para diferenciar a direção do princípio. Trata-se de um princípio dirigido não para os objetos, mas, antes disso, para o modo como significamos ou dizemos algo. É, talvez, como assinala AUBENQUE e CASSIN um princípio transcendental, mas Kant, portanto, não sabia do seu caráter analítico originário. É através desta direção que se compreende a necessidade lógica do princípio e, importante, na Refutação de Gamma 4, é isto que está sendo posto em questão pelo opositor que Aristóteles procura converter pedindo que signifique algo para si mesmo.

Esse engano de Kant aliás é um meio engano, pois a interpretação que ele faz dessa versão do PNC parecerá aos mais atentos como sintomática da doutrina Kantiana de uma Filosofia Transcendental. E, nesse sentido, esta interpretação que Kant apresenta do “simultâneo” no PNC de Aristóteles é de acordo com a sua concepção - original e paradigmática - de uma certa Lógica Transcendental que cuidaria das formas lógicas de uma referência a priori.

O conceito de síntese de Kant por si só requererria um outro exame neste trabalho. Vamos arbitrariamente deixá-lo de lado aqui para efeitos de uma aproximação do uso de “simultâneo” em Aristóteles. Ao final, isso talvez se mostre mais justificado.

Aliás, Kant poderá sustentar até o final que a fórmula do princípio continua sintética mantido o “simultaneamente” e apresentada a nossa interpretação deste. Mas isso não quer dizer ainda, que o PNC em questão verse sobre uma regra para a forma dos juízos sintéticos e, muito menos, como se poderá verificar, que o PNC em questão verse sobre uma regra de predicação do juízo como Kant procura exemplificar na mesma passagem da Crítica da Razão Pura.

O uso do termo “focal” é aqui provisório. Mais adiante indicamos uma “identidade focal”. Parece haver uma certa interpretação do “ser” em Aristóteles envolvida nisso, mas aqui isso ainda é inicial.

Ainda que na física qualquer doutrina da eternidade seja uma flagrante absurdo.

terça-feira, 23 de junho de 2009

PREFÁCIO AO TRABALHO - A VIDA

Para um marinheiro experiente uma bússola quebrada pode ser substituída pela observação acurada das estrelas, de modo a manter a orientação desejada e levar até o porto desejado, mas se não há um timão sob às mãos para manter ou alterar a direção que se segue, então pouco adianta a experiência ou a consciência da direção a seguir.

Entende-se por esta metáfora que uma coisa é ter em mãos um bom mapa, bons instrumentos, mas que outra coisa é ter em mãos não somente a possibilidade de escolher a direção a seguir, isto é, a excelente orientação, mas também os meios efetivos para seguir nesta direção, quer dizer, a capacidade de sobreviver e lutar frente às tempestades da alma e ao vale de lágrimas deste mundo.

Neste trabalho, portanto, por um desígnio do autor, o que menos importa são os resultados efetivos, pois se tiver sido possível sobreviver às tempestades e aos pesadelos, tanto melhor, pois, assim, foi possível viver, contemplar e agir neste mundo. Que isto seja entendido não como uma advertência sobre o que é apresentado, mas como uma indicação daquilo que, afinal, realmente importa.

UM PREFÁCIO DE TRABALHO

O EU EXISTENTE E O EU DA REGRA - FILOSOFIA

O EU EXISTENTE E O EU DA REGRA*

Ein Ausdruck hat nur im Strome
des Lebens Bedeutung.
Ludwig Wittgenstein

Alguns filósofos sustentam que o “eu”, com o qual a investigação filosófica se defronta, é determinado pela sua natureza semântica. Parece, porém, que nem todos tem em mente uma característica unívoca do “eu” que estaria a ser apresentada em expressões filosóficas.

Ela poderia ser caracterizada como unívoca se em seu uso é sempre substituível, salva veritate, por outra expressão que cumpra o seu papel na situação lógica, é dizer, que siga uma regra analítica de intersubstitutividade com outro pronome ou expressão, preservando a referência lógica do nome a um objeto, como sempre, do sinal à coisa. Trata-se, como assinalou Frege, da introdução do conceito de função saturada no domínio do pensamento.

A regra analítica presente nos contextos em que o “eu” é usado, seja para demonstrar uma condição transcendental do pensar , seja para indicar o sujeito que argumenta no curso de uma demonstração filosófica ou de uma ação. Diz-se, tem referência ou é fato.

Ora, isso parece indicar também uma figura clássica do pensamento filosófico . É a apresentação do ser do mesmo modo que é a compreensão do pensamento. A figura apresenta o que é como aquilo e somente aquilo que é pensado. Assim, interessa ver melhor alguns dos traços dessa figura para, talvez, encontrar nela também uma entidade já conhecida no discurso cotidiano e habitual dos homens.


O EU TRANSCENDENTAL

Faz parte dessa figura de pensamento que o “Penso, logo existo.” de Descartes indica, algo que parece estar pressupondo uma analogia verbal entre “penso” e “eu penso”. Isto é, uma condição transcendental de todo o pensar, a saber, que exista um “eu” como suporte do pensamento, como condição lógica e ontológica de qualquer pensamento .

Seja este “suporte” ainda duvidoso quanto a sua existência material ou substantiva, seja este, após algumas providências, um conhecimento seguro, teríamos, então, que verificar de que modo essa figura pode ser colocada em tela e que se recuse a legitimidade de todas as questões sobre a importância dela para a filosofia.

Quase do mesmo modo, podemos dizer que o “Eu penso que deve poder acompanhar todas as minhas representações.” de Kant indica também uma condição transcendental de todo pensar, a saber, que estas representações sejam minhas e que isso pode ser demonstrado pelo meu “eu penso” que pode sempre vir acompanhando e ligando elas em meu pensamento.

Isso quer dizer que, nos dois contextos, o “eu” que pensa em Descartes e Kant, a despeito de estar no curso de uma argumentação filosófica deveras despersonalizado, faz uma referência segura a um “eu existente” ou um “sujeito de vontade”, ainda que não esteja em questão no contexto em que ambos argumentam se ele é material ou empiricamente existente ou se, ao contrário, trata-se de uma substância imaterial.

Sabe-se, por certo, que a res cogitans e o eu transcendental, não são ainda determinados empiricamente. Mas de um modo bem rigoroso eles estão ali como sujeito lógico e, por isso, condição de toda e qualquer representação, seja ela empírica - mundana e real -, seja também ela uma representação pura, divina ou superior.

Outros julgam atualmente que, ao contrário, o “eu” da filosofia tem uma multiplicidade de referências segundo contextos de uso e isso quer dizer, nada mais nada menos, que o “eu” é sempre relativo ou sempre fragmentado em suas exposições.

Mas, pode-se encontrar no “eu” também, segundo outros, uma determinação gramatical do pronome pessoal que visa determinar não a intenção em um certo contexto, mas sim a regra subjacente ao uso do pronome. Nesse sentido, o “eu” é sempre relacional que percorre algumas modalidades determinadas e que, nas palavras de Tugendhat, tem sido mal compreendido, pois:

“...se entendeu mal a função da palavra “eu”, pensando ser ela um nome que representa algo, a saber, o eu. Na verdade, o uso da expressão “eu” é outro; eu é uma expressão indexical. Outros exemplos de palavras indexicais são as palavras “aquilo”, “aqui”, “amanhã”. O característico destas expressões é que elas identificam algo, porém de um modo relativo a situação em que se fala. Por isso, essas expressões não tem objetos fixos, não identificando algo de uma vez por todas como o fazem os nomes próprios. Ao contrário, depende da situação qual objeto é identificado por uma expressão desse tipo, e, se a situação muda, tem de se usar uma expressão indexical do mesmo grupo.”
E, desse modo, para o moinho pós-moderno, o “eu” é relativo a uma regra e, em todos os seus registros, se mostra fragmentado . Mas parece, entretanto, óbvio que da sua diversidade de significados, não se segue uma diversidade de operações ou de sujeitos lógicos para os quais ele estaria acidentalmente referido .

O uso do pronome pessoal “eu” em ambos os casos parece ser ontologicamente comprometido com a tese de que há algo “existente” que lhe corresponde .

SEMÂNTICA E OPERAÇÃO

A confusão frequente (que parece uma disputa acadêmica) sobre a modalidade de relação entre o aspecto semântico-referencial e o aspecto gramático-operacional deve, entretanto, ser elucidada e, se possível, dissolvida.

E eu creio que o modo de fazê-lo envolve uma exibição de que ambos aspectos podem ser distintos filosoficamente, mas que, entretanto, são cotidianamente compreendidos em conjunto e usados pelos usuários da linguagem de um modo associado na palavra “eu”.

Pois, por um lado, não podemos sustentar que o eu filosófico esteja, nos contextos em que ele é considerado por diversos autores, limitado e confinado ao seu aspecto semântico indeterminado . E, por outro lado, não parece ser possível limitar o uso filosófico do pronome “eu” a uma tentativa confusa de exibição de alguma verdade que, no fundo, faz confusão entre entidades da linguagem (palavras) e entidades do mundo (coisas).

Uma boa expressão dessa forma de consideração é encontrada em textos que muitas vezes parecem apontar para um “eu existente” como este próprio texto.

FILOSOFIA ANALÍTICA

A filosofia analítica é uma das correntes filosóficas que desde as suas origens sustenta, contra uma filosofia da consciência, que o “eu” é um mero elemento da linguagem cotidiana que não ganha nenhum valor mais nobre ou profundo ao ser usado por filósofos. Em geral, a abordagem se presta a mostrar que o “eu” ou, também, a subjetividade é vácua, isto é, não indica coisa alguma. Ou seja, a interpretação em jogo aqui indica somente uma função com o deíctico “eu”, a saber, algo pode ser saturado. Pareceria que o “eu” é usado aí simplesmente como suporte de crenças ou, nos termos antes apresentados, como indicando um “sujeito lógico”, mas de fato ele apresenta somente uma função.

Para atingir este resultado, os filósofos analíticos, procedem a alguns expedientes de interpretação de algumas expressões em que o “eu” encontra as suas nuances explicitadas e as suas determinações conceituais determinadas.

Vejamos algumas expressões desse tipo e, antes de realizar a análise delas e classificá-las, através de uma discriminação dos seus traços mais visíveis, vamos somente tentar compreendê-las. A lista de expressões “filosóficas” em que pode constar o pronome “eu” pode ser a seguinte:

1. “Eu penso tal”;
2. “Eu penso que tal e tal”;
3. “Eu sei”;
4. “Eu creio”;
5. “Eu sinto”;
6. “Eu vou”;
7. “Eu espero”;
8. “Eu vejo”;
9. “Eu gosto”;
10. “Eu estou angustiado”;
11. “Eu mesmo verifiquei isso”;
12. “Eu estou aqui”;

Alguns exemplos de abordagens analíticas destas expressões já foram produzidas por filósofos como Wittgenstein, Ryle, Austin, Davidson, Quine, Tugendhat, Anscombe, Williams, e outros.

Entre o conjunto de problemas filosóficos suscitados pelo exame do uso do pronome pessoal “eu”, parece ser um problema de interesse central a determinação e uma certa elucidação, ligada ao exame semântico ou gramatical do uso e da regra correspondente a esse uso, e de qual vem a ser em diferentes contextos a referência desse deíctico e a caracterizar precisamente a força lógica de cada um dos usos acima.

Na tábua de testes podemos começar pelo que pode ser negado, sem contradição.

1. “Eu não penso tal”, sem contradição;
2. “Eu penso que tal e tal”, sob a regra;
3. “Eu sei”, independente;
4. “Eu creio”, sem contradição;
5. “Eu sinto”, sem contradição;
6. “Eu vou”, sem contradição, voluntário;
7. “Eu espero”, sem contradição;
8. “Eu vejo”, sem contradição;
9. “Eu gosto”, sem contradição;
10. “Eu estou angustiado”, sem contradição;
11. “Eu mesmo verifiquei isso”, sem contradição;
E acabamos naquilo que não pode ser negado:
12. “Eu estou aqui”, contradição.

A apresentação de contextos em que o pronome tem o seu uso afetado por uma certa opacidade referencial tem sido constatada como eficaz contra a tendência de se considerar o pronome como uma regra de uso unívoca, isto é, com uma única pretensão indicativa.
REFERÊNCIAS SIMPLICITER

É constante e corrente, nas investigações filosóficas, que se faça, para diversas finalidades, uma distinção entre coisas simples e complexas. E isso é valido também para algumas expressões da nossa linguagem.

Wittgenstein, por exemplo, faz uma confissão privada a Malcolm que pode nos ajudar a entender um pouco que traços lógicos ou ontológicos podem estar envolvidos nesta discussão entre o simples e o complexo.

Segundo Malcolm:

“Perguntei a Wittgenstein se ao escrever o Tractatus lhe havia ocorrido algo que ele considerasse um exemplo de “objeto simples”. Respondeu que por aquele tempo ele acreditava por si mesmo que era um lógico, e que não lhe dizia respeito, por ser um lógico, o objetivo de determinar se esta ou essa coisa era uma coisa simples ou complexa, já que se tratava de um assunto puramente empírico.”

Quer dizer, aplicando essa lição, se o “eu” tem ou não uma característica simples ou complexa, isso não deve ser objeto de investigação de uma lógica e, ainda, se ao contrário, ele tem uma característica complexa, então parece ser certo que decidir sobre o seu uso legítimo envolve um exame empírico. Mas que tipo de exame empírico parece estar sendo sugerido sobre o ‘eu’.



O ARGUMENTO DE MOORE SOBRE O “BEM”

Do mesmo modo que MOORE sustenta que foi a confusão da simplicidade analítica de “Bom” que levou muitos filósofos a identificar inadequadamente “bom” com outras propriedades complexas, podemos dizer que também o “eu” de que trata a filosofia tem uma certa simplicidade analítica que, entretanto, não é reconhecida o que levando os filosófos a procurar análisá-la ainda, isto é, a buscar no “eu” uma propriedade complexa ou até identificá-lo a propriedades complexas, faz com que eles busquem uma referência para o “eu”.

Segundo o resultado da aplicação do argumento de MOORE, a identificação ou busca seria, então, inadequada, pois que, parafraseando o argumento: em se tratando da noção de “eu” nada existe que possa ser colocado em lugar dela.

E como é isto o que Moore entende quando diz que a noção de “bem” não é semanticamente definível, isto é, não tem nenhuma referência, é isto que pode ser considerado também sobre o “eu”, ou seja que, da mesma forma, o eu não tem no curso da investigação filosófica nenhuma referência, desde que para indicar a referência tenhamos que indicar um objeto correspondente ou exibir a sua definição semântica.

Parafraseando o autor do Principia Ethica, parece ser possível entender a relação do seu argumento para o “bem” e aquela indicação, que parece ser implicada no Tractatus de Wittgenstein, de que estaríamos a tratar aí de algo inefável.

A redução do “eu” à esfera das coisas que são ditas, e a identificação das propriedades do “eu” com “algo que é um eu” é o que, em relação ao conceito de “bem”, designaria MOORE de uma falácia naturalista.

A falácia naturalista pode ser compreendida como uma redução da função semântica do “eu” como partícula indexical, a uma referência ao “eu existente” com característica ontológica, isto é, particular e contingente, o que pode ser dito por outra via de acesso como uma redução do dever-ser, do universal como regra semântica ao particular como caso, isto é, ser.
AS TRÊS FAMÍLIAS

Exemplos dessa redução poderiam ser agrupados, assim como os exemplos da redução do “bem” em Moore, em três famílias:

I - A que sustenta que o “o único eu é existencial”;

II - A que identifica “eu como uma realidade supra-sensível”;

III - A que identifica o “eu” a uma partícula da linguagem e que só nesse sentido é referencial.

Todos esses sistemas reduzem o “eu” a “eu existente”, “dever-ser” a “ser”, cometendo assim as inferências sofísticas já advertidas por Aristóteles. É dizer, segundo Aristóteles, que podendo pensar algo como regra, tomar algo como um conceito ou universal, tenta-se a inferir a existência de um objeto correspondente na realidade.

O EU EXISTENTE

Um dos fatos que, entretanto, pior para a teoria, inspiram mais confiança em nosso entendimento comum contradiz a hipótese de que quando eu falo em primeira pessoa, num texto, estou fazendo um uso meramente figurado do pronome.

Não parece ser o caso. Pois, boa parte do que eu falo ou escrevo, ainda que podendo ter um valor de verdade indeterminável, é um resultado do meu labor interior ou, nos termos de Aristóteles, da divisão ou união de conceitos que eu consigo efetuar. Eu poderia negar que tudo isso que eu disse atrás poderia ser expressão do meu eu?

Ora, ainda que eu possa corrigir o que escrevo ou queimar o que eu registro, não me parece haver opacidade alguma entre algumas expressões no presente contexto, tais como:

Daniel escreveu uma página.

Ele, tinha a página escrita entre as mãos.

“Eu escrevi uma página.”

“Acabei uma página.”

Claro, desde que se entenda uma relação sempre presente aí entre o uso expressivo declarativo e o uso expressivo descritivo do pronome como condicionada para fins de determinação da sua referência pelo seu presente contexto de declaração.

Mas quem me ouve dizer “Escrevi um página.” constata “Ele afirma ter escrito uma página.”?

No sentido direto, parece que sim. Mas quando Descartes diz em sentido aparentemente oblíquo: Eu penso, logo eu existo. Como nós reagimos? Nos vem a mente a expressão: “Descartes pensa, logo Descartes existe.”?

Este trabalho, nas suas intenções mais profundas, procurou mostrar que, em relação a essa questão, Descartes usa o “eu” não para falar de si mas sim para falar da primeira condição sob a qual eu mesmo posso fazer referência a algum pensamento meu e, com isso, comprometer-me com a minha própria existência ou, também, com a possibilidade de verdade de certas proposições. É a descoberta da vontade e das suas decorrentes exposições.

CONCLUSÃO

Uma consequência é certa: se o pronome “eu” é meramente acessório, então, nenhum tipo de prova filosófica a ele vinculada pode ser demonstrada como possuindo todas as condições de verdade analiticamente satisfeitas. De outro lado, se ele não é acessório, então ele é fundamental para que todas as condições de verdade de uma proposição sejam dadas.
Isso quer dizer, em termos linguísticos que, se o “eu” não está ligado a um outro na proposição, então a proposição jamais pode ter todas as suas condições de verdade dadas, isto é, então não há um “eu” que produza a proposição. Em termos kantianos, essa tese é reapresentada na Refutação do Idealismo, como dizendo: não há eu sem que seja dado algo permanente na percepção. Ora, como a filosofia, justamente, caracteriza-se por afastar-se de qualquer coisa que possa ser dada na percepção, então não há “eu da regra” em sentido filosófico que permita inferir um “eu existente”.

Mas, nesse caso, o “eu” da filosofia tem um caráter, ao fim e ao cabo de qualquer análise, formal. E parece ser isso que, nos primórdios, a Filosofia Analítica de um modo pressuposto estava a dizer, ao colocar o “eu” filosófico, fora do mundo, como em Wittgenstein, ou, então ao considerá-lo um mero elemento gramatical sem pretensões subjetivas ou psicológicas.

Mas, se concebemos que não há proposições sem um “eu” que as produza, então é necessário que para cada proposição que se apresente com pretensões de verdade exista, pelo menos, um “eu” subjacente. A pergunta final será, então, assim formulada: faz sentido falar do “eu da regra” sem pressupor o reconhecimento de um “eu existente”?

NOTAS:

* Este panfleto foi concebido como uma forma de dar luz ao trabalho que me é sugerido pelas inquietações, talvez superficiais, que me são provocadas pela problemática envolvida sob o curso “Autoconsciência e Argumentação Filosófica” do Prof. Paulo Francisco Estrella Faria. As dificuldades com a forma de apresentação me parecem ser essenciais para a compreensão dos poucos tópicos examinados aqui.

Uma “condição transcendental do pensar”, não é de modo algum ainda uma condição de conhecimento. Posso pensar o que quiser, mas isso ainda não é um conhecimento. Assim , essa “condição”significa apenas (se isso é pouco) a possibilidade de pensar e exibir a regra ou conceito com o qual penso. Isto é, considerado meramente como regra. Posso, então, perguntar se ainda não tenho um conhecimento?

Tomo emprestado aqui o conceito de figura de Wittgenstein, como forma de frisar a interdependência entre o estado de coisas e algo que na sua origem é a condição primeira da sua constituição, a saber o “eu” que contempla, representa, figura e diz algo sobre alguma coisa. Um outro uso do conceito de “figura”é anterior ao nosso.

Conf. DESCARTES, R. Meditações de Primeira Filosofia. & Discurso do Método.
Independente da recusa da existência do que é pensado.

Conf. KANT, I. Crítica da Razão Pura. B 131-132.

Nesse caso, a investigação deveria ser encaminhada em direção de um exame dos diferentes contextos de uso, com vistas a determinação do papel do pronome nesses contextos. Pareceria mais interessante, se há trilhos sobre os vagões que seguem, que o “sujeito lógico” e o “sujeito de vontade” encontram-se como condições necessárias de toda expressão - substituível salva veritate - indicativa de um agente ou suporte da regra.

Quero frisar a diferença entre considerar o “eu” como relativo ou, então, considerá-lo como relacional. No primeiro, considera-se o “eu” como um pronome para diversos fins na linguagem. Já no segundo, considera-se o “eu” como submetido a uma regra e, por isso mesmo, não assegurando, até uma demonstração a ser constituída ( sabe-se lá como), uma referência no mundo. Nesta face, encontramos as modalidades de negação, afirmação (não simbolizável), temporalidade, lugar, etc. O relativo se dispersa, enquanto o relacional focaliza. A primeira versão relacional é de interesse na interpretação das figuras de linguagem e da literatura em geral, incluindo alguns textos filosóficos. Porém, a segunda versão indica, antes de qualquer acidentalidade, as regras sob as quais se está fazendo um uso legítimo da expressão na linguagem. Essa segunda versão está preocupada com o papel do “eu”, por exemplo, no estabelecimento da verdade de algumas proposições ou, então, na compreensão das condições de verdade de algumas proposições com o seguinte tipo lógico “Eu sou”. A consideração ontológica é anterior à negação, pois algo faz algo quando algo é negado ou afirmado. Dizer “é” é anterior ao “não”.

Conf. TUGENDHAT, Ernst. O EU. in: ANALYTICA. v. 1, n.1. 1993, p.10. Me parece ser essa idéia que no fundo guia a análise da regra de uso para a interpretação do caso em que a regra se instância.

Vou agora misturar, por consequência as “más” intenções pós-modernas e as “boas” intenções analíticas. O uso do “eu” é, então, sempre condicional.

A tese pós-moderna é profundamente psicologista. Quer dizer, está ocupada com critérios de conhecimento e determinação de certos “estados mentais”.

É dizer, há uma regra de uso única no uso expressivo do pronome.

Quer dizer, é sempre indicativo de um sujeito não proposicional, ainda que a sua referência não tenha sido determinada como empírica.

Operar com uma regra aplicando-a não é o mesmo que examinar a legitimidade da aplicação. Nesse caso, aplicar a regra é usá-la na linguagem, mas examinar a legitimidade do seu uso é, bem mais, ver o que ela significa e se ela significa alguma coisa. A diferença aí pode ser mais explicitada se considerarmos um aspecto não trivial no nosso uso da linguagem, a saber, que usamos as regras quando isto é feito para proposicionalmente falar de fatos, não das regras mesmas.

É dizer, quase referencial. Um exemplo clássico é, já citado acima, encontrado em Descartes. E podemos também incluir Kant e Hegel nessa vertente não referencial. No caso, o “eu” da filosofia parece indicar um “sujeito lógico” não intra-mundano como diria Heidegger e, também, parece indicar algo “inefável” como no TLP de Wittgenstein ou num sentido mais claro, parece indicar uma espécie de condição absoluta da intersubjetividade discursiva que, no entanto, como absoluto não tem uma referência.

MALCOLM, Norman. Recuerdo de Ludwig Wittgenstein.in: Las Filosofias de Ludwig Wittgenstein. Org. Ferrater Mora. p.85 (a versão para o português é minha.)


PS.: Não vou corrigir nem retocar. Texto inédito produzido em 08.06.1996.
Nos tempos de pós-graduação eu tive o péssimo hábito de fazer sempre algo mais. Se me perdi ou me achei é outros quinhentos. Se me perdi que valha para evitar outras perdições. Se me achei....